DA REDAÇÃO DO V!VA
Ligeiro, artístico, multicolorido, autoral: o cristal (ou o vidro artístico) confeccionado na ilha de Murano, em Veneza, na Itália, mergulha suas raízes na origem da própria cidade —e já era notícia por volta do ano 1290.
Em nossos dias, foi resgatado o objeto leve, de vidro assoprado e torcido, onde o talento, a experiência e os pequenos movimentos do mestre-vidreiro ao mexer na massa vítrea incandescente fazem toda a diferença.


Nos anos 1950, entretanto, a moda era a de oferecer ao público objetos de Murano mais pesados, com bolhas ou pó de ouro dentro e muitas vezes essas peças eram bibelôs, cinzeiros e vasos estilizados com formas de animais.
Com suas nuances de época, a arte secular de se fazer vidro na ilha veneziana de Murano se conta aos séculos. Há quem diga que remonta ao fim da Idade Média, quando as catedrais na Europa já tinham sido edificadas e os mestres-vidreiros, responsáveis por confeccionar vitrais e rosáceas nessas igrejas monumentais, ficaram sem emprego. Muitos deles, podem ter vindo de Ravena para Veneza, depois de concluída a construção de basílica local.


(Foto Silvio Cioffi-V!VA)
ORIGEM DO CRISTAL VENEZIANO
Por volta do ano 1300, quando Veneza estava nos primórdios do que viria a ser a República Sereníssima, seus governantes, os doges, ofereceram espaço para que esses profissionais do trabalho em vidro artístico lá fossem viver.
Estratégico, usado para guardar remédios, vinho, para isolar as janelas, o vidro é, ainda hoje, insubstituível —e os doges venezianos já tinham consciência da sua importância.
Nessa época, Veneza comercializava com o Oriente e até com o Extremo Oriente, como destacam os relatos do mercador, explorador e diplomata Marco Polo (1254-1324). Os venezianos detinham ainda uma importante posição política e comercial em Constantinopla, atual Istambul (Turquia), a antiga capital do Império Romano do Oriente. No bojo dessa relação de importação e exportação, o vidro de Murano ganhou mercado em suas mais variadas formas e cores. Peças decorativas, lustres, lindas contas chamadas de murrinas, garrafas e recipientes de cristal provenientes de Veneza caíram, assim, a preferência do mundo “globalizado” de então.


MURANO, SEMPRE
A ilha de Murano é, ainda hoje, um lugar marcante, essencial para quem mergulha na história de Veneza. O local é uma referência na arte de trabalhar o vidro (ou o cristal!), material que, antes, remontava às civilizações dos fenícios, egípcios e mesopotâmicos.
Na mesma capital da República Sereníssima que viveu e enriqueceu também graças ao vidro de Murano, as famílias do mestres-vidreiros originais, e muitas vezes aparentadas, eram “reféns”, vivam numa gaiola de ouro. A obra Il Libro d´Oro di Murano, publicada em 1650, fazia, aliás, a listagem de famílias muranesi —gentílico da ilha. No elenco de sobrenomes ligados ao vidro estão famílias como Barbini, Venini, D´Angelo, Seguso, Ferro, Serena, Barovier, Toso, Zecchin, Cappelin, Nason, Signoretto e Salviatti, entre outras.
Além de detentores de um saber atávico —o vidro é, ainda hoje, feito em de forma tradicional, em fornos poderosos, que geram temperaturas de mais de mil graus Celsius. Pelo temor do fogo, de um incêndio em San Marco e nas casas de madeira que existiam na parte central de Veneza, os doges criaram as regras que justificavam a manutenção das famílias dos artesãos em Murano.
É fato que, nessa época, os muranesi podiam até se casar com pessoas da nobreza veneziana, muito embora estivessem “condenados” a viver na ilha onde produziam vidro artístico.

MILENAR, ATÉCNICA DO CRISTAL
Conhecer a fundo o que fazer com a massa vítrea incandescente e perigosa, com a qual é difícil de trabalhar, e que sai do forno numa densidade que pode ser manipulada por apenas um minuto, é um ofício que já passou de pai para filho em Murano.
Aquele momento da maleabilidade do material depende de ter um bom forno e depende ainda da espessura desejada e da cor do vidro, que pode ter dureza diferente, dependendo do óxido de metal usado para colorir a massa vítrea.
Antigos dizem que mestres-vidreiros mais velhos são melhores é nos pequenos movimentos que o objeto de cristal ganha vida.
É da malícia do artesão que vem a beleza das formas, e o verdadeiro vidro de Murano é deliciosamente instável, artesanal, sempre parece que saiu do forno. O tempo ensina, traz descobertas, apura o profissional que molda, assopra e belisca a massa vítrea. As proporções artísticas também se tornam mais acuradas.

UM SEGUSO ENTRE NÓS
Proeminente mestre-vidreiro de uma das famílias mais tradicionais de Murano, Mario Seguso mudou-se nos anos 1950 para São Paulo. Depois, radicado em Poços de Caldas (MG), introduziu, na sua Cristais Cá d´Oro, técnicas de seu ofício no Brasil.
Na sua família, entre os Seguso de Veneza, um dos papas do cristal foi Archimede, que manteve uma fábrica em Murano com seu filho, Gino. Há outros Seguso na ativa em Veneza, caso de Gianni Seguso, autor de trabalhos tradicionais, como os alegres lampadários “fiori e frutti”. E também está na ativa o festejado Livio Seguso, que faz trabalhos bem contemporâneos.


CRISE E CASTIGO
Atualmente, a indústria do vidro artístico assoprado com um tubo de metal se debate com a alta dos preços do gás que alimenta os fornos, produto importado da Rússia, algoz da guerra contra a Ucrânia —e vítima de um providencial embargo ocidental.
Há décadas, a chegada do gás como combustível dos fornos melhorou a qualidade do cristal de Murano. Há relatos de que, antigamente, se usava lenha que vinha da Dalmácia —nome do território que hoje abrange parte da Croácia, da Bósnia e Herzegovina e de Montenegro— para derreter a massa vítrea. Outro ingrediente essencial para fazer o vidro-cristal é a areia. Quanto mais limpa é a areia usada, mais belo é o objeto que sai do forno.
Dadas às características insulares de Veneza, a matéria-prima ideal foi sempre uma aspiração dos fabricantes de cristal. Os objetos mais refinados usavam, tradicionalmente, areia de Fontainebleu, na França, ou importada da Bélgica.
Mestres-vidreiros de verdade também dominam a arte de construir os próprios fornos. O maçarico, de forma coadjuvante, também é utilizado, especialmente em pequenos bibelôs.


MURANO NOS SÉCULOS 20 e 21
Artistas de Murano são respeitados no mundo todo e suas obras contemporâneas integram acervos de museus. É o caso de Lino Tagliapietra, radicado em Seattle (EUA), atualmente uma cidade-meca do vidro artístico.
Mas a aceitação internacional do cristal veneziano teve início nos anos 1930, quando o advogado milanês Paolo Venini reposicionou a indústria e fez um marketing que revolucionou sua aceitação.
Para testemunhar in loco essa arte luminosa que atravessa os tempos, há o Museo Del Vetro de Murano, na Fondamenta Giustinian, 8. Ali, no Palazzo Giustinian, o acervo conta com peças dos anos 1400-1800. Objetos de mestres-vidreiros e designers contemporâneos também integram as mostras desse museu. (SILVIO CIOFFI)
SITES:
Museo del Vetro
Cristais Cá d´Oro
Lino Tagliapietra
Sensacional Sr. Silvio. Uma lição de conhecimento e história! Estive em Veneza em 2007 e trouxe com o maior cuidado um relógio de murano. Lindo . Maravilhoso. Simplesmente despedaçado pela abertura de uma porta de geladeira pela empregada. Coisas da vida!
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